Uma nota técnica emitida conjuntamente pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela Defensoria Pública da União (DPU) nesta quinta-feira (23) considera inconstitucional a internação compulsória de usuários de drogas, tal como defendeu o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes.
Ao longo de 15 páginas, as duas instituições sustentam que a medida implica graves violações constitucionais, pois impõe uma ‘restrição à liberdade’ e trata a saúde como uma obrigação imposta aos indivíduos e não como um direito fundamental.
“A Constituição Federal afirma que ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Ora, a internação compulsória é a privação de liberdade sob o pretexto de submeter um sujeito a tratamento de saúde”, registra o documento. As duas instituições consideram ainda que a medida fere não apenas dispositivos constitucionais como também tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte.
Para o MPF e a DPU, o Estado não pode adotar medidas de ‘higienismo social’. As instituições consideram que o uso da internação compulsória para tratamento de dependentes químicos sem o consentimento deles geralmente tem como objetivo não declarado a retirada dessas pessoas dos espaços públicos.
Também apontam que a proposta está na contramão da Lei Federal 10.216/2001, que instituiu a ‘Política Antimanicomial’, que prevê a ‘reinserção social’ no lugar da internação.
Eduardo Paes anunciou a medida na última terça-feira (21) por meio de publicação nas redes sociais. Ele informou ter solicitado ao secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, uma proposta para implementar a internação compulsória de usuários de drogas.
“Não é mais admissível que diferentes áreas de nossa cidade fiquem com pessoas nas ruas que não aceitam qualquer tipo de acolhimento e que, mesmo abordadas em diferentes oportunidades pelas equipes da prefeitura e autoridades policiais, acabem cometendo crimes. Não podemos generalizar, mas as amarras impostas às autoridades públicas para combater o caos que vemos nas ruas da cidade demandam instrumentos efetivos para se evitar que essa rotina prossiga”, escreveu o prefeito.
Já determinei ao Secretário @danielsoranz que prepare proposta para que possamos implantar no Rio a internação compulsória de usuários de drogas. Não é mais admissível que diferentes áreas de nossa cidade fiquem com pessoas nas ruas que não aceitam qualquer tipo de acolhimento e…
— Eduardo Paes (@eduardopaes) November 21, 2023
No mesmo dia, o secretário Daniel Soranz endossou a iniciativa. “Estamos vendo uma série de casos de pacientes que passam pelas unidades ambulatoriais, com situação clínica se agravando e indo a óbito. Tivemos notícia de um garoto de 20 anos, três meses fora de casa, que foi a óbito por overdose e dependência química. Isso é uma preocupação imensa, o número de óbitos desses casos vem aumentando muito no município do Rio de Janeiro”, disse. Ele ressaltou que a medida seria aplicada nos casos em que o usuário de drogas não tenha condição de responder por si naquele momento.
Dados divulgados pelo governo municipal, dentro do Censo de População em Situação de Rua, de 2022, mostram que 86,1% das 7.865 pessoas que vivem nesta condição são dependentes químicos.
Ao contrário de São Paulo, onde usuários de crack se concentram mais no Centro, no Rio eles estão pulverizados por diferentes bairros. O censo feito pela Secretaria municipal de Assistência Social identificou e percorreu 57 pontos em todas as regiões, que foram identificados como “cenas de uso”.
A postagem de Eduardo Paes sofreu críticas de pesquisadores. Entidades das áreas da saúde e dos direitos humanos alegam que as altas taxas de recaídas logo nos primeiros dias após o fim de tratamentos compulsórios indicam que a medida não funciona.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), representação regional da Organização Mundial da Saúde (OMS), também tem posição contrária por considerá-la inadequada e ineficaz.
Após as críticas, Paes voltou às redes sociais nesta sexta-feira (24) compartilhando um artigo que elogia a medida. “Não se falou em retirá-los com tiro, porrada e bomba pela polícia. Mas, sim, através da atuação de médicos e assistentes sociais, cuidadosamente preparados para a tarefa”, escreveu Ricardo Bruno, autor do texto.
A internação compulsória de usuários de drogas em situação de rua é urgente e necessária – Agenda do Poder https://t.co/6G8XXfd1ID
— Eduardo Paes (@eduardopaes) November 24, 2023
A nota técnica emitida pela DPU e pelo MPF também defende a importância dos CAPs. “São responsáveis pela indicação do acolhimento, pelo acompanhamento especializado durante esse período, pelo planejamento da saída e pelo seguimento do cuidado após a saída, devendo promover a reinserção do usuário na comunidade. É estabelecido um prazo máximo de nove meses de acolhimento, restrito a adultos”, registra o documento.
DPU e MPF observam que a internação deve se dar sempre em caráter individual, sendo vedada sua adoção como política pública massiva. Também aponta que a legislação até permite a internação compulsória, porém apenas de forma excepcional, como no caso em que o usuário de droga comete crime.
Debate nos tribunais
Conforme a Lei Federal 10.216/2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, há três tipos de internação psiquiátrica. A primeira é a voluntária, quando há concordância do paciente. A segunda é a involuntária, solicitada por familiares e por responsável legal. Já a internação compulsória deve ser fruto de determinação judicial. Nestes dois últimos casos, onde não há consentimento do paciente, a medida deve ser adotada de forma excepcional.
No caso dos usuários de drogas que também são moradores de rua, o debate envolve ainda outros elementos. Em agosto desse ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) referendou uma liminar concedida pelo ministro Alexandre de Moraes que deu prazo para que o governo federal elabore um plano para a efetiva implementação de uma ‘política nacional’ para acolhimento da população de rua e determinou que estados e municípios observem diretrizes normativas. A decisão também proibiu o recolhimento forçado de bens e pertences, a remoção e o transporte compulsório de pessoas e o emprego de arquitetura hostil.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 976 foi ajuizada no STF pelo partido ‘Rede Sustentabilidade’, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
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