Há 30 anos, Brasil foi às urnas decidir se teria Rei, primeiro-ministro ou presidente

direitaonline



Há 30 anos, a televisão brasileira transmitia episódios de uma propaganda eleitoral peculiar. Não se viam candidatos pedindo voto para cargos eletivos. O que estava em jogo era algo bem maior: a própria estrutura política e administrativa do Brasil.

No feriado de 21 de abril de 1993, após dois meses de propaganda eleitoral, os brasileiros foram às urnas decidir se o país voltaria a ser uma próspera monarquia (o que aconteceu até o golpe republicano) ou continuaria sendo república, e também se seria instaurado o parlamentarismo ou mantido o presidencialismo.

Documentos desse plebiscito guardados hoje no Arquivo do Senado, em Brasília, revelam que, mesmo sendo uma época sem internet comercial nem redes sociais, as fake news se espalharam pela sociedade.

Embora defensor da república, o senador Jutahy Magalhães (PMDB-BA) denunciou a campanha de desinformação que se montou contra a monarquia: “Está havendo uma confusão tal que outro dia, em minha casa, ouvindo uma conversa das empregadas domésticas, escutei-as dizerem que, se voltar a monarquia, voltará a escravidão. Pensei que aquilo fosse apenas desinformação de pessoas menos esclarecidas, mas, por coincidência, lendo a seção do plebiscito no jornal O Globo, uma das perguntas que havia era: “Se voltar a monarquia, voltará a escravidão?”.

Os documentos históricos de 1993 mostram que os discursos e debates parlamentares foram sempre contrários à restauração da monarquia. As pesquisas de intenção de voto já adiantavam que ela não tinha chance e a república ganharia de lavada. Monarquista assumido no Senado, só havia Ney Suassuna (PMDB-PB).

Nas páginas dos jornais e nos programas da TV, a monarquia ganhava destaque só por causa do inusitado e da curiosidade popular. Muito se noticiou, por exemplo, sobre a briga na família imperial entre os descendentes de D. Pedro II pelo direito de ser coroado em caso de vitória no plebiscito. A revista Manchete publicou o perfil de um deles chamando-o de D. Pedro III.

“Quando ouço dizerem que se deve votar no rei, pergunto-me: “Em qual rei?”. Porque parece que há dois candidatos, o Pedrão e o Pedrinho. A luta vai ser muito grande”, alfinetou à época o então senador Epitácio Cafeteira (PDC-MA).

Outros senadores avaliaram que seria uma “aberração” voltar um século na história e “desproclamar” a república.“A monarquia não se coaduna com a democracia, por impedir que o povo escolha seu governante” discursou o senador Valmir Campelo (PTB-DF).

“Além disso, concentra excessivo poder nas mãos de um único indivíduo, o que é extremamente perigoso. E não há qualquer garantia de que o titular do poder seja de fato preparado e detenha liderança e carisma para o exercício de suas funções. Haverá quem diga que o rei, limitando-se à função de Poder Moderador, não governa de fato. Estaremos, então, diante de uma inutilidade, de um simples adereço, de um totem para o qual serão carreados recursos oriundos do povo.”.

“O Império foi tresloucado. E não só porque teve a mancha da escravidão, que é terrível”, criticou o senador Cid Saboia de Carvalho (PMDB-CE).
“D. Pedro I, irritado, era capaz de sufocar com sangue qualquer movimento. D. Pedro II também não teve clemência em determinados momentos. A Guerra do Paraguai é a coisa mais ridícula da história do Brasil. Até hoje não há quem a explique. Estamos no século 20, na era do computador, e agora há essa história de rei. Isso é uma autêntica palhaçada!”, dizia.

 

 

Mesmo opondo-se à restauração imperial, o senador Eduardo Suplicy (PT-SP) ofereceu um ‘conselho’ aos monarquistas. Sugeriu que, caso quisessem mesmo vencer o plebiscito, esquecessem o sangue azul, ou seja, a legítima descendência imperial:

“Deveríamos pensar em outra família, não nos descendentes da família real portuguesa. Quem sabe uma família daqueles que vieram forçados, como escravos, da África? Ou deveríamos pensar num rei descendente de Zumbi dos Palmares? Mais legítimo ainda seria escolher um rei descendente de um dos caciques das diversas tribos indígenas que aqui habitam há muito mais tempo do que os portugueses que colonizaram o Brasil.”, disse.

A lei que regulamentou o plebiscito de 1993 determinou que três frentes se formassem para falar na propaganda eleitoral do rádio e da TV: a da monarquia parlamentarista (com rei e primeiro-ministro), a da república parlamentarista (com presidente e primeiro-ministro) e a da república presidencialista (com presidente apenas).

Não houve a frente da ‘monarquia presidencialista’ porque tal arranjo foi considerado impossível. Entendeu-se que um país não pode ter rei e presidente ao mesmo tempo, pois em nenhum país existe esse sistema de governo, apesar de que também nada poderia impedir que uma nação adotasse o modelo.

As frentes no Senado foram suprapartidárias. A maioria das siglas se dividiu internamente entre o parlamentarismo e o presidencialismo e liberou seus políticos e filiados para votar como quisessem.

Poucos partidos fecharam questão. O PSDB encampou o parlamentarismo. O PT, por sua vez, o presidencialismo. O chefe do partido, Luiz Inácio Lula da Silva, era inicialmente parlamentarista e mudou de lado para acompanhar a posição partidária. Por essa razão, o presidente do PDT, Leonel Brizola, chamou Lula de “biruta”.

Em 1889, logo após liderar o golpe de Estado que derrubou D. Pedro II e a monarquia brasileira, o marechal Deodoro da Fonseca assinou seu primeiro decreto determinando que o povo brasileiro oportunamente se manifestaria nas urnas sobre a continuidade ou não da república.

O plebiscito de 1993 não teve relação com esse decreto. Deodoro, ao notar que não viria nenhuma tentativa de restauração monárquica, desistiu da ideia de legitimar a república pelo voto popular e meses depois baixou uma nova norma tornando crime a tentativa, por qualquer via, de implodir a forma republicana de governo.

A consulta de 1993 tampouco teve relação com um plebiscito organizado 30 anos antes. Em 1963, os brasileiros foram às urnas e votaram pela volta do presidencialismo, pondo fim a uma experiência parlamentarista que durou apenas um ano e quatro meses.

No curto período parlamentarista, uma grande fatia do poder do presidente da República foi entregue ao primeiro-ministro. O presidente foi sempre João Goulart. Por outro lado, foram três os primeiros-ministros, sendo Tancredo Neves o mais longevo deles, com dez meses no poder.

Essa, contudo, não foi a primeira vez que o Brasil teve primeiro-ministro. O país também foi parlamentarista durante o reinado de D. Pedro II. Os primeiros-ministros eram escolhidos no Senado.

O plebiscito de 1993 foi convocado por determinação da Constituição de 1988. Na Assembleia Nacional Constituinte, muitos deputados e senadores desejavam converter ao país ao parlamentarismo.

O que vingou na Constituição, porém, foi o presidencialismo. Os parlamentaristas de 1988 não se deram por vencidos e conseguiram incluir na Carta Magna a possibilidade de virar o jogo cinco anos depois.

Originalmente, a Constituição marcou o plebiscito para 7 de setembro de 1993. Em 1992, os parlamentaristas conseguiram antecipar a consulta popular em quase cinco meses. Eles ainda tentaram emplacar uma cédula eleitoral que os favorecia — nela, a palavra “parlamentarismo” aparecia duas vezes; “presidencialismo”, apenas uma —, mas o modelo foi descartado por pressão dos presidencialistas.

Em abril de 1993, quando os eleitores foram às urnas, o Brasil ainda se recuperava de um turbilhão político. O presidente Fernando Collor de Mello havia sofrido impeachment em dezembro de 1992. Quem governava era o presidente Itamar Franco, que não interferiu na campanha eleitoral.

As três frentes usaram a queda de Collor em seus programas. Para os monarquistas, o rei garantiria a estabilidade política que faltava ao Brasil. Na análise dos parlamentaristas, a queda de um primeiro-ministro saído do Parlamento não prejudicaria tanto o país quanto a de um presidente eleito pelos cidadãos. Os presidencialistas, por sua vez, argumentaram que um presidente poderia ser facilmente removido sempre que fizesse um mau governo.

No lugar de explicar didaticamente suas próprias ideias à população, as frentes se dedicaram com mais afinco a enxovalhar as ideias adversárias. Para a propaganda eleitoral, recrutaram artistas famosos como porta-vozes.

“Uma das maiores tristezas de um povo é não poder escolher o governante de seu país”, afirmou o ator presidencialista Milton Gonçalves, referindo-se ao fato de o primeiro-ministro não ser eleito pela população.

“Parlamentarismo, com eleição direta para presidente. Este eu ainda não conheço bem, mas dizem que é muito bom. Presidencialismo. Este eu conheço de sobra e é exatamente por isso que eu não quero nunca mais”, rebateu a atriz parlamentarista Neusa Borges.

“Os presidencialistas vivem dizendo que o Congresso não representa bem o país porque, por exemplo, não tem metade de homens e metade de mulheres. E o presidente? O presidente, por acaso, é metade homem e metade mulher?”, argumentou o ator monarquista Hugo Carvana.

“Para você ver como é absurdo esse argumento, né?”, concordou a atriz monarquista Cissa Guimarães. “Votando no rei, você ganha muito mais que um rei. Você ganha o sistema de governo mais moderno e democrático que existe: o parlamentarismo monárquico. É o único que contém voto distrital misto, a maneira mais simples de eleger um Congresso eficiente e que realmente represente a população brasileira.”.

Diante da desinformação que era veiculada na TV e das fake news que corriam por fora (como a da volta da escravidão caso a monarquia vencesse), o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Paulo Brossard, viu-se obrigado a aparecer na propaganda eleitoral para tentar explicar de forma imparcial o que significavam os quatro quadradinhos da cédula de votação. Não deu muito certo. Técnicas demais, as palavras que o ministro escolheu foram incompreensíveis para o povo.

 

 

Como o voto era no papel, a apuração do plebiscito foi concluída poucos dias depois do feriado de Tiradentes. O resultado não surpreendeu ninguém. Venceram a república, com 66% dos votos, e o presidencialismo, com 56%. Tudo ficaria como estava, literalmente.

Na forma de governo, os votos brancos e nulos (23%) foram mais numerosos que os dados à monarquia (10%). Os monarquistas também reclamam, até hoje, do formato da cédula, que acabava descartando votos dados para ‘Monarquia e Presidencialismo”. A abstenção foi considerável. Dos 90 milhões de eleitores, 23 milhões não se sentiram motivados a ir às urnas (26% do total).

 

 

Quando o resultado se tornou oficial, o senador Pedro Simon lamentou: “Parece mentira, mas o povo brasileiro vai ficar marcado na história por, nas duas únicas vezes em que foi chamado a opinar, ter dito “não” ao parlamentarismo. Agora voltaremos assistir à essência do sistema presidencialista. As pessoas vão dizer que “Lula e o PT vão salvar o Brasil”, que “Maluf é o centro e esta é a hora do centro” e que “Brizola é um homem que já tem conteúdo e condições”. Voltaremos ao velho filme: as pessoas serão as salvadoras. Foi assim com Getúlio, Juscelino, Jânio e Tancredo. Por mais competentes que sejam, as pessoas estão sujeitas a fatalidades, tais como a renúncia, o impeachment e até a morte. Os salvadores da pátria e os santos milagrosos não existem.”

Na avaliação do historiador e professor Roberto Biluczyk, que escreveu uma dissertação de mestrado sobre o plebiscito de 1993, a população não se engajou naquela discussão por vários motivos, como a disputa ter sido entre projetos políticos quase abstratos, e não entre candidatos, e a campanha não ter sido didática o suficiente.

“Perdeu-se a oportunidade de incluir a sociedade nos grandes debates políticos do país”. Biluczyk destaca, porém, duas mudanças ocorridas no Brasil em decorrência da consulta popular de 1993.

A primeira foi que os integrantes da antiga família imperial brasileira ficaram conhecidos, o que permitiu que o movimento monarquista pós-plebiscito ganhasse adeptos e que descendentes de D. Pedro II entrassem na política.

A segunda mudança foi que, uma vez batido o martelo pela continuidade do presidencialismo, Itamar Franco deixou de encarar seu governo como provisório ou tampão e enfim passou a governar para valer. Menos de um mês depois do plebiscito, o presidente empossou no Ministério da Fazenda o parlamentarista Fernando Henrique Cardoso, que cuidaria da elaboração do Plano Real e o sucederia no Palácio do Planalto. Continuou tudo do mesmo jeito.


Fonte, foto e arte: Agência Senado
Reportagem: Ricardo Westin
Edição: Mayra Cunha
Pesquisa histórica: Arquivo do Senado
Edição de foto e vídeo: Bernardo Ururahy
Design e finalização de vídeo: Aguinaldo Abreu
Arte de capa: Aguinaldo Abreu

Gostou? Compartilhe!
Next Post

Após votar em Lula, fundador da Natura agora se diz decepcionado com petista

O empresário Pedro Passos, fundador e conselheiro da Natura, está descontente com o início do governo Lula. Ele afirmou que a gestão, até agora, foi “bastante decepcionante”. No ano passado, ele assinou a ‘Carta pela Democracia’, declarou voto em Lula no segundo turno da eleição (diz ter votado em Tebet […]